26 março 2021

Rick Riordan: "Eu me sinto muito protetor com meus fãs. Estou ciente de minha responsabilidade em fazê-los se sentirem seguros"


 O autor fala sobre as terríveis adaptações de Hollywood, futuras adaptações para Disney e Netflix, sobre escrever personagens DSR ([da] diversidade sexual e romântica) para seus fãs apaixonados e dizer adeus a Percy Jackson.

Depois de Percy Jackson, Rick Riordan tinha um plano. Depois de terminar A Torre de Nero (The Tower of Nero [foto no alto, lançado no final do ano passado]), o último romance de seu arco de 15 livros imensamente popular sobre adolescentes semideuses descendentes de deuses e deusas da Grécia Antiga, o autor pretendia uma "semi-aposentadoria", na forma de um PhD em mitologia celta em Harvard, bem perto de onde mora. Então a Disney apareceu com um plano próprio: adaptar os livros de Percy Jackson para a Disney+.

Riordan tem uma história particularmente espinhosa com adaptações. Quando Chris Columbus estava adaptando o primeiro livro de Percy JacksonO Ladrão de Raios (The Lightning Thief), em 2009, Riordan enviou aos produtores uma nota crítica e agora lendária expondo seus problemas com o roteiro. À maneira do professor do ensino médio que já foi, Riordan começa com um leve elogio (“há coisas que gosto nesta adaptação”) antes de uma mudança abrupta.

“Tendo dito isso, aqui está a má notícia: o roteiro como um todo é terrível”, escreveu ele, em uma carta tão amada por seus fãs que recebeu até leituras dramáticas. “Não quero dizer simplesmente que se afasta do livro, embora certamente faça isso a ponto de ser quase irreconhecível como a mesma história. Os fãs dos livros ficarão zangados e desapontados. Eles vão deixar o cinema em massa e gerar um boca a boca horrível.”

Brandon T. Jackson como Grover Underwood, Logan Lerman como Percy Jackson e
Alexandra Daddario como Annabeth Chase em Percy Jackson e os Olimpianos: o Ladrão de Raios
Passaram-se mais de 10 anos desde que O Ladrão de Raios chegou às telas (foi um sucesso de bilheteria e gerou uma sequência, apesar de criticado como medíocre por fãs e críticos). Riordan estava compreensivelmente nervoso quando a Disney ligou. Mas a Netflix também estava interessada em adaptar As Crônicas dos Kane (The Kane Chronicles), em que os irmãos Sadie e Carter Kane enfrentam os deuses do antigo Egito. E a Fox, que detinha os direitos dos livros de Percy Jackson, foi vendida para a Disney. Parecia que uma mudança radical estava chegando.

“Por causa das guerras de streaming, há uma nova sensação em Hollywood de que eles precisam muito de conteúdo. Há uma nova vontade de trabalhar com os criadores de conteúdo que talvez não existisse antes”, diz ele. “Portanto, tivemos que tomar uma decisão do fundo da alma. Eu tinha um plano para como seriam os próximos anos. Eu estava pronto para ser um aluno de doutorado. E eu não sou um fã de Hollywood, nunca fiquei impressionado. Eu não poderia me importar menos com TV e filmes, honestamente. Mas isso não é verdade para meus fãs. Eles realmente queriam novas adaptações e ficaram amargamente decepcionados com os filmes”.

Riordan e sua esposa, Becky, decidiram que “deviam aos fãs tentar mais uma vez”. Ambos são agora produtores das séries Carter Kane e Percy Jackson, e estão trabalhando no roteiro do piloto deste último.

“Então, em vez de aprender línguas celtas, agora estou aprendendo a linguagem da indústria cinematográfica, que definitivamente tem seu próprio jargão”, diz Riordan. “Mas eu me sinto animado. Estou cautelosamente otimista.”

Apolo, de Viria
(artista autorizada por Riordan)
Riordan está falando por Zoom de Boston, com uma pilha de cópias de A Torre de Nero atrás dele. O quinto e último livro da série As Provações de Apolo (The Trials of Apollo) mostra o deus Apolo, enviado à Terra na forma do adolescente Lester Papadopoulos, tentando reconquistar seu lugar no Monte Olimpo. É o último livro ambientado no mundo de Percy Jackson, embora Riordan não descarte visitar o mundo novamente.

“O que começou com O Ladrão de Raios termina com As Provações de Apolo. Se eu voltar a este mundo, pode ser por um evento ocasional, mas gosto da sensação de ser capaz de girar mais rapidamente de uma ideia para a outra”, diz ele. Na ausência desse PhD, este é outro tipo de graduação, ele pensa, “no sentido de que há uma sensação de realização e entusiasmo, estou feliz por ter terminado e estou animado com o que vem a seguir. Mas também é a última vez que estou com esses personagens e é agridoce dizer adeus. Espero ter dado aos leitores uma boa despedida.”

A Torre de Nero apresenta aparições de alguns dos personagens mais amados de Riordan: Nico di Angelo, o filho de Hades; Annabeth Chase, filha de Atena; e o próprio Percy Jackson, é claro. O jovem herói de Riordan apareceu pela primeira vez no romance infantil de estreia do autor, O Ladrão de Raios de 2005, idealizado por Riordan como uma história de ninar pare seu filho Haley. Recontando os mitos, o professor se lembrou de uma tarefa que usou com seus alunos da sexta série, onde pediu que criassem um herói semideus e lhes dessem uma missão. Ele inventou Percy Jackson, filho de Poseidon e uma mulher mortal, e o enviou em uma missão para recuperar o raio de Zeus nos Estados Unidos modernos.

Haley estava tendo dificuldades na escola, tendo sido diagnosticado com dislexia e TDAH (Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade). Percy também estava: mas no mundo de Riordan, o TDAH é um sinal de que você pode ser um semideus, enquanto a dislexia de Percy é atribuída a ele ser programado para ler grego antigo.

Will Solace e Nico di Angelo ("Solangelo"), de Viria
Riordan mostrou o romance às crianças que estava ensinando: elas aprovaram. Riordan largou seu emprego como professor depois de fechar o contrato de um livro — “não era enorme, mas era muito dinheiro para um professor do ensino médio” — e passou os primeiros anos em turnês sem descanso. No terceiro livro, Riordan estava começando a chegar ao topo das paradas.

“Achei que cinco livros seriam tudo de que eu precisaria para cobrir completamente a mitologia grega. Claro, eu estava errado. Eu mal arranhei a superfície”, diz ele.

Além dos cinco livros de Percy Jackson — que acontecem ao redor do Acampamento Meio-Sangue, um campo de treinamento para os descendentes dos deuses gregos — Riordan escreveu a série Os Heróis do Olimpo (The Heroes of Olympus), com foco no romano Acampamento Júpiter. Depois, há As Crônicas dos Kane, ambientadas no mesmo mundo, mas com mitos egípcios; a trilogia Magnus Chase e os Deuses de Asgard (Magnus Chase and the Gods of Asgard), em torno dos mitos nórdicos; e os cinco romances As Provações de Apolo. Hoje, milhões de cópias de seus livros foram vendidas em todo o mundo (e Haley tem um mestrado em ensino superior especializado em diferenças de aprendizagem, do qual Riordan tem muito orgulho).

“Houve muitos motivos pelos quais decidi continuar”, diz Riordan. “Mas, à medida que mais leitores descobriam e queriam ser incluídos no mundo, senti que era uma oportunidade realmente especial e importante para expandir a gama de personagens no mundo de Percy.”

O elenco de Riordan é notavelmente diversificado em termos de raça, gênero e sexualidade. Quando ele deixou claro que Nico di Angelo era HAH (seu namorado, Will Solace, é filho de Apolo), houve algumas reações. “Eu tenho escrito esse personagem por tempo suficiente para perceber que isso é simplesmente quem ele é”, disse Riordan. “Perdi alguns leitores nisso. Mas alguns deles voltaram e me disseram que tiveram uma conversa com, digamos, um irmão que mais tarde descobriram que era 'gay'. 'Nico foi a forma que encontramos para nos comunicarmos, e para eu aprender um pouco mais e me tornar mais receptivo'.” (N/T: o próprio deus Apolo é "bissexual" nos livros de Riordan, assim como ele o é na mitologia, tendo amado homens e mulheres; inclusive ele gerou uma filha com outro homem, mas isso ficará para outra matéria)

Magnus Chase e Alex Fierro ("Fierrochase"), de Viria
Seus livros Deuses de Asgard apresentam o personagem Alex Fierro, filha ou filho de gênero fluido do deus nórdico Loki, que muda de gênero frequentemente nos mitos. Riordan criou Alex depois de se lembrar de jovens que ele ensinou que não se sentiam confortáveis ​​com seu gênero atribuído, por quem ele gostaria de ter feito mais na época. (N/T: Alex e o protagonista Magnus Chase são namorados; a princípio Magnus ficou confuso com a própria sexualidade por se interessar por alguém que às vezes é uma garota e às vezes é um garoto, mas ele acabou percebendo que tudo em Alex lhe faz bem; e o deus Loki é a mãe de Alex, além de ser "bissexual")

“Tentei estar lá por eles, mas gostaria de ter entendido com o que aqueles alunos estavam lidando e ter a linguagem e a capacidade emocional para ajudá-los mais do que eu pude. Então, isso sempre esteve comigo”, diz ele. “Fazia todo o sentido para mim que um filho de Loki fosse de gênero fluido.”

Alex, ele diz, escreveu a si mesma — ela usa pronomes femininos, “a menos que ela esteja em um lugar onde ela sinta que seus pronomes são masculinos, caso em que Alex vai te dizer isso”. Ele leu muito, falou com muita gente, “e apenas tentei fazer o melhor trabalho que pude, sabendo, é claro, que como um cara 'hétero', cis, branco, eu não seria capaz de habitar a experiência dela totalmente. Mas fiz o melhor trabalho que pude. E recebi muitos comentários de que as pessoas se sentiam realmente fortalecidas por ter um personagem como esse em um livro infantil popular.” Em 2017, ele ganhou um prêmio Stonewall por O Martelo de Thor (The Hammer of Thor), pelo mérito excepcional em sua representação de adolescentes DSR.

Capa do livro O Martelo de Thor exibido no site oficial de Rick Riordan
com o selo do prêmio Stonewall
(note o colorido em arco-íris das capas)
“Todos os jovens sobre os quais escrevo, em um momento ou outro, estiveram na minha sala de aula. Eu me sinto muito protetor com eles. Estou muito ciente da minha responsabilidade de fazer o que é certo por eles, de fazer com que se sintam seguros”, afirma. “Uma das melhores coisas sobre a interação com os fãs é quando eles vêm até mim e dizem, 'Esta é a primeira vez que eu vi um personagem como eu e senti que eu tenho tanto valor, isso me ajudou em um momento muito difícil.' Pensar que talvez, pelo menos em alguns casos, eu tive algum papel na construção de um senso de aceitação, é incrível.”

Desde O Ladrão de Raios em 2005, Riordan publicou cerca de dois livros por ano. Ele atualmente não tem nada sob contrato e se sente um pouco aliviado. Ele ainda está escrevendo, é claro, mas tudo o que vai revelar é que "não é um livro de mitologia".

“Quando eu tiver um manuscrito que quero compartilhar, vou enviá-lo ao meu agente e veremos para onde vai”, diz ele.

Mas, apesar de todos os seus sucessos, ele ainda sente falta de ensinar. Pelo menos uma vez por semana, ele sonha que está na sala de aula e percebe que se esqueceu de fazer um plano de aula ou dar notas a um monte de redações.

“Uma vez professor, sempre professor”, diz ele. “Mas a boa notícia é que ainda me sinto um professor. Apenas tenho milhões de jovens na sala de aula agora. E eu não tenho que dar notas, o que é bom.”

Fonte: The Guardian

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