22 abril 2021

Aquela vez em que o Juiz Dredd era "gay"


 O Juiz Dredd (Judge Dredd) é um ícone dos quadrinhos britânicos, uma robusta figura da lendária antologia de ficção científica 2000AD desde sua segunda edição, em 1977. Um homem da lei autoritário em um futuro arruinado onde o que resta da humanidade é amontoado em Mega-Cidades (Mega-Cities) perigosamente superpovoadas, Dredd é juiz, júri e frequentemente carrasco. Simplificando — como ele costuma fazer — ele É a lei.

Em 2013, também parecia que a lei poderia ser "gay".

Na corrida para o lançamento do Prog 1817 de 2000AD — para os não iniciados, "Prog" é o que a publicação chama de "edições", um dos muitos jargões exclusivos associados à HQ — a mídia tradicional britânica foi varrida com relatos de que Dredd seria revelado como "gay" em uma história de capítulo único apropriadamente intitulada 'Closet' ('Armário' em português), escrita por Rob Williams e com arte de Mike Dowling.

Muitos veículos correram com a mesma imagem no topo deste artigo, lançada pela editora de 2000AD, Rebellion, para aumentar o frisson para a história — Dredd agarrando um homem e beijando-o, enquanto seu monólogo interior reflete sobre como ele sempre soube que era "gay", mas estava "com muito medo de admitir".

E por que não? Num relance, Dredd se encaixa em muitos dos traços de um homem "gay" enrustido — emocionalmente atrofiado, se entrega ao trabalho, nunca discute sua vida privada, tem uma queda por couro e uniformes. OK, esse último talvez seja uma questão de preferência pessoal, mas há uma razão para o Village People ter um policial vestido de couro (sem falar em toda a arte de Tom of Finland). Visualmente, muito do Juiz Dredd como personagem já é codificado como "gay".

A resposta foi, infelizmente, previsível. Vozes online de direita ficaram horrorizadas que esse modelo de masculinidade pudesse ser revelado como "um daqueles 'homossexuais' covardes", e se enfureceram com a forma como a história era apenas para apaziguar liberais esquerdistas. Do outro lado da discussão estavam aqueles que estavam dando boas-vindas à revelação ou debatendo onde Dredd poderia cair no espectro da sexualidade. Foi uma guerra cultural discreta, antes de eles ultrapassarem praticamente todas as interações na internet.

Na época, o escritor Williams até disse ao The Guardian que Dredd "pode muito bem ser 'gay', 'hétero' ou 'bi'", mas que qualquer atração era subsumida por sua devoção à lei. No entanto, Williams acrescentou "você pode imaginar o que aconteceria se essa repressão acabasse, apenas por um instante? Claro, Dredd poderia ser 'gay'."

Devlin Waugh (vampiro exorcista "homossexual"):
"Eu digo, Dredd--isso é um Daystick na sua mão,
ou você só está feliz em me ver?"
No final das contas, porém, a sexualidade de Dredd permaneceu tão secreta quanto seu rosto infame e nunca visto (o filme de Sylvester Stallone não conta). Na verdade, 'Closet' mostra um jovem chamado Taylor Cook, e o agora infame beijo aconteceu em uma boate eufemisticamente chamada de "Dredd's Daystick", onde "gays" vestidos de Juízes de Mega-City One (Mega-Cidade Um) com o distintivo no peito escrito "DREDD", descrita como "uma boate underground secreta inspirada no homem mais macho man vestido de couro e capacete que esta cidade já viu". ("Daystick", "Cacetete do Dia", é o nome do característico longo e grosso cassetete do Juiz Dredd, e, pois é, o Juiz Dredd da imagem acima não é só um cara fantasiado dele)

A história em si é estranhamente doce em algumas partes, ou talvez agridoce, com Taylor contando sua dificuldade em chegar a um acordo com sua própria sexualidade e enfrentar seu pai abusivo e homofóbico. Em apenas seis páginas, 'Closet' também consegue transmitir a sensação de aceitação que muitas pessoas AMS (amante[s] do mesmo sexo) experimentam quando começam a encontrar sua comunidade, e a liberdade que Taylor encontra quando descobre a Dredd's Daystick reflete a importância dos espaços AMS no mundo real.

Taylor e seu melhor amigo Jason são surpreendidos e agredidos pelo pai homofóbico de Taylor.
Eles nem sabiam se eram "gays", mas se descobriram atraídos um pelo outro.
Hall of Just Us
A própria boate também é descaradamente pervertida. Do tema central de seus patronos interpretando Juízes — uma homenagem aos bares temáticos de uniforme e couro do mundo real emergindo como lugares onde os homens que que se atraem por homens (HAH) poderiam explorar uma forma de masculinidade que a sociedade lhes negou — a um painel de dois homens entrando em um quarto escuro chamado de "Hall of Just Us" ("Salão Só de Nós" em português, uma peça sobre o Grand Hall of Justice [Grande Salão da Justiça em português] de onde os Juízes comandam), ela não se afasta da natureza sexual de tais locais. Dowling transmite essa realidade sem mostrar nada explícito, contudo.

No entanto, tudo piora quando o verdadeiro Dredd e um grupo de seus colegas Juízes invadem a boate, condenando todos os presentes — incluindo Taylor — a cinco anos em um isocubo (prisão) por se fantasiarem de um Juiz. Embora haja um toque de positividade na conclusão, com Taylor se recusando a fugir de sua prisão ou de sua "homossexualidade", em vez disso jurando silenciosamente estar "fora" ("out" em inglês, que também quer dizer "assumido") de mais de uma delas depois de cumprir sua pena, a história também levanta questões sobre o tipo de representação que queremos ver na grande mídia.

Taylor Cook: "Me prendam".
Embora o Juiz Dredd seja, sem dúvida, um dos personagens mais reconhecíveis dos quadrinhos, ele infelizmente também é... bem, "politicamente complicado", para dizer o mínimo. Embora as histórias que o apresentam sejam frequentemente sátiras mordazes ou previsões sombrias de nossa própria direção de viagem, o próprio Dredd é frequentemente retratado como algo entre um autoritário intransigente e um fascista absoluto. Histórias anteriores o viram atirando em manifestantes pró-democracia para manter o controle dos Juízes e, mesmo depois de uma crise de fé no sistema brutal que ele defende, apenas ofereceu aos cidadãos de Mega-City One um referendo sim-não sobre se os Juízes continuam a governar ou se mudam para a democracia sem nenhum plano real para cumpri-la. Essa história em particular, 'Twilight's Last Gleaming' ('O último brilho do crepúsculo' em português) foi publicada em 1991 — muito antes da votação do Brexit do Reino Unido em uma escolha binária semelhante, sem nenhum planejamento claro — enquanto o uso geral de violência e extrema força de Dredd para manter a ordem política previa a militarização das forças policiais e a resistência civil, como nas recentes chamadas para "Desmonetizar a Polícia" ("Defund the Police", um slogan que apoia a retirada de fundos dos departamentos de polícia e realocá-los para formas não policiais de segurança pública e apoio comunitário).

Taylor sendo preso pelo Juiz Dredd
Mesmo quando o verdadeiro Dredd prende Taylor em 'Closet', há uma pausa desconfortável em seu discurso enquanto ele dá seu veredicto sobre o crime de "usar o uniforme para... fins de entretenimento". Essa elipse faz muito trabalho pesado, um congelamento momentâneo quando o homem da lei com botas de cano curto se desvia diretamente da festa obviamente "homossexual" que suas forças interromperam, pintando a ideia como um anátema para suas sensibilidades.

Então, sim, se o próprio Juiz Dredd tivesse sido revelado como "gay", certamente teria sido um grande momento para a representação HAH nos quadrinhos e na mídia em geral — a questão é, nós o teríamos querido como um dos "nossos"?

Fonte

Você pode ler 2000AD #1817 Judge Dredd - Closet aqui (em inglês) ou baixá-la aqui (em inglês, junto com várias outras edições no mesmo link).

Nenhum comentário:

Novo Juggernaut (Fanático) é um jovem coreano HAH super do bem!

 A antologia em série Marvel's Voices chega à sua 100ª edição na Marvel Unlimited apresentando a primeira aparição de Justin Jin , tamb...