O tropo "enterre seus
gays" ("
bury your gays") é um dos mais prevalentes em Hollywood nas histórias de amor do mesmo sexo, sobretudo entre homens. Aqui está uma explicação completa de seu significado e sua história.
Nos últimos anos, o público ouviu mais sobre o tropo "enterre seus gays", levando a perguntas sobre sua história em Hollywood e por que é tão controverso. Mesmo que a representação AMS (de Amor do Mesmo Sexo) no cinema tenha melhorado, as narrativas AMS no cinema giram amplamente em torno do conceito de sofrimento. Morte, vilania, abuso e tragédia são componentes comuns da experiência AMS em Hollywood. Embora algumas histórias estejam lentamente começando a quebrar o molde, o tropo de enterrar seus 'gays' continua a atormentar a mídia AMS.
A representação AMS adequada na mídia é inestimável. Além de fornecer educação empática sobre questões e identidades AMS, também funciona para ajudar a dissipar os estereótipos negativos que cercam a essa população e aumentar a autoaceitação e a auto-realização de pessoas AMS. Quando a TV e o cinema contam apenas histórias de sofrimento e morte para seus personagens AMS, isso reforça a ideia de que amar o mesmo sexo é apenas sofrer. Como o número de mortes continua aumentando para personagens AMS — especialmente na televisão, onde personagens AMS estão sendo mortos em um ritmo desproporcional — a comunidade pediu aos criadores de mídia, incluindo séries como The Walking Dead e The 100, para fazer melhor com seus retratos de personagens AMS e suas narrativas em torno deles.
O número de mortes de personagens AMS na televisão e no cinema atingiu tal altura que os bancos de dados online começaram a rastrear as mortes AMS na mídia — e os poucos casos em que a representação de personagens AMS leva a um final feliz. Does The Dog Die, um popular sítio de crowdsourcing que rastreia gatilhos e avisos de conteúdo na mídia, tem uma seção dedicada para rastrear se um personagem AMS ("LGBTQ+") morre. Uma organização sem fins lucrativos, LGBT Fans Deserve Better ("Fãs LGBT Merecem Mais"), foi criada em resposta à quantidade desproporcional de mortes e finais infelizes para personagens AMS, especialmente personagens femininas AMS, que vêm sendo mortas em um ritmo alarmante ao longo dos anos.
O que significa o tropo "Enterre seus gays"
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Milk (2008) é baseado na vida e trágica morte do ativista dos direitos 'gays' e político Harvey Milk, que foi a primeira pessoa abertamente AMS a ser eleita para um cargo público na Califórnia, EUA |
O tropo "enterre seus
gays" recebeu esse nome porque os personagens que amam o mesmo sexo têm muito mais probabilidade de morrer no cinema e na televisão do que seus colegas que amam o sexo oposto. Quando os personagens AMS nos filmes não estão sendo
literalmente enterrados, eles estão sendo
forçados a passar por sofrimento,
vilania homocodificada ou enterrados sob um
subtexto homoerótico. Essas mortes geralmente ocorrem logo após o personagem AMS finalmente ser capaz de confessar ou agir de acordo com sua sexualidade,
dando-lhes um breve momento de felicidade antes de serem extintos. No entanto, suas mortes e sofrimentos são frequentemente usados não para desenvolver sua própria narrativa, mas as dos personagens — especialmente os personagens que amam o sexo oposto — ao seu redor. À medida que as histórias AMS são contadas, naturalmente haverá momentos em que os personagens sofrerão e morrerão; é simplesmente
uma parte natural da narrativa. Mas quando seu personagem é reduzido apenas a esse sofrimento
para torná-lo um mártir ou um bode expiatório moral, essa mídia não está mais fazendo justiça ao personagem AMS ou à narrativa dele; eles foram despojados de sua identidade para serem usados como uma ferramenta. O tropo trata personagens AMS como se fossem facilmente descartáveis e indignos de seu próprio desenvolvimento. Também normaliza perigosamente a ideia de que ser AMS é viver uma vida cheia de sofrimento, trauma ou infelicidade.
Representação AMS nos primeiros filmes
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Wings (1927) mostrou o primeiro beijo na boca entre pessoas do mesmo sexo (H/H) no cinema e foi um dos primeiros filmes a mostrar nudez masculina |
No início do cinema e na literatura do século XIX, o tropo "enterre seus
gays" era na verdade um refúgio para autores AMS. Para publicar histórias AMS, os autores usariam a morte de seus personagens AMS como forma de subverter a censura; se seu personagem AMS sofresse um destino terrível, os autores não estariam mais promovendo "atos pervertidos", que poderiam, na melhor das hipóteses, impedir a publicação e, na pior das hipóteses, resultar em prisão. Essa solução alternativa permitiu que histórias AMS fossem contadas, mas teve o preço de personagens AMS serem retratados como doentes mentais ou simplesmente confusos e muitas vezes resultava em seus amantes sendo "consertados" em sua sexualidade após suas mortes. À medida que os filmes exploravam vários assuntos ao longo dos anos, os personagens AMS tornaram-se mais prevalentes, embora ainda estivessem sujeitos à exploração e ao sofrimento. Os filmes dos anos 1920 e início dos anos 1930 eram muito mais ousados do que os das décadas seguintes, apresentando abertamente mulheres sexualmente liberadas, atividades violentas e personagens AMS, embora os criadores frequentemente tivessem que andar na linha para escapar das críticas. Filmes como
Wings (1927) e
Morocco (1930) apresentavam beijos entre pessoas do mesmo sexo, mas caminhavam na linha tênue entre romance, amizade e atuação para se safar do uso de personagens AMS.
"Enterre seus gays" e o Código Hays
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The Children's Hour (1961) ensina que amar um(a) igual só pode levar a tragédia e morte |
Enquanto Hollywood ultrapassava os limites com filmes lascivos para atrair multidões escassas durante a Grande Depressão, as forças conservadoras começaram a revidar. O ex-congressista republicano William Hays deixou seu papel na política para se tornar o chefe da Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes. Com o apoio de grupos conservadores e religiosos, Hays promulgou o Código de Produção de Hollywood de Will Hays de 1930, comumente conhecido como Código Hays. Implementado de 1934 a 1968, o Código Hays era um conjunto de diretrizes auto-impostas da indústria, consistindo em 36 regras que proibiam coisas como palavrões, violência gráfica e "perversão sexual". A promulgação do Código Hays faria com que personagens amando o mesmo sexo desaparecessem da tela prateada pelas próximas três décadas e meia. A expressão aberta e positiva de personagens AMS foi estritamente proibida pelo Código Hays, e os criadores da época foram forçados a usar estereótipos negativos e representações vilanescas de personagens AMS para evitar boicotes em massa a seus filmes. Essa era realmente deu origem ao conceito de homocodificação (
queercoding), em que certas características e simbolismo sutil são usados para transmitir a homossexualidade de um personagem ou história ao subconsciente do público. Seguir o Código Hays era tecnicamente voluntário, mas aqueles que não obedeciam — especialmente criadores abertamente AMS, como a cineasta Dorothy Arzner — eram simplesmente apagados da história.
O Código Hays nunca conseguiu remover personagens AMS dos filmes; simplesmente os transformou em vilões cujas mortes o público poderia comemorar. Esse período no cinema é amplamente responsável por muitos sentimentos homofóbicos na sociedade estadunidense (e, claro, mundial), já que a repetida vilanização de personagens AMS reforçava a ideia de que a homossexualidade é inerentemente imoral e algo que deve ser punido, muitas vezes com a morte. Um dos maiores exemplos do tropo "enterre seus gays" sob o Código Hays é The Children's Hour, que conta a história de duas professoras de um internato acusadas de ter um caso amoroso. Quando uma das professoras — Martha (Shirley MacLaine) — finalmente confessa sentir amor romântico por sua colega de trabalho, Karen (Audrey Hepburn), ela lamenta sua culpa e nojo de si mesma antes de tirar a própria vida. Como o filme não promoveu positivamente a homossexualidade de Martha, o filme foi autorizado a ser lançado como estava.
"Enterre seus gays" em filmes modernos
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Em It — Capítulo Dois, Pennywise mata brutalmente Adrian Mellon arrancando seu coração depois que ele e seu namorado são brutalmente agredidos em um crime de ódio por adolescentes homofóbicos |
Embora Hollywood tenha ido além do Código Hays, o tropo "enterre seus
gays" ainda está fortemente presente nas narrativas AMS. Filmes com representação e histórias AMS ainda estão em minoria em Hollywood, e aqueles que têm personagens AMS frequentemente se concentram repetidamente em abuso, alienação, rejeição e discriminação que assolam a população AMS. Mesmo filmes que focam em histórias reais, como
Bohemian Rhapsody e
Philadelphia, que servem para trazer à luz os verdadeiros obstáculos enfrentados pela população AMS, reduzem toda a experiência AMS a nada além de sofrimento. Personagens AMS no cinema moderno são frequentemente alvo de abuso, assassinato e ridículo motivados pela homofobia. A
epidemia de AIDS é outro tópico amplamente popular na representação AMS moderna, chegando como mais uma maneira de os criadores de filmes enterrarem seus '
gays'. O
suicídio ainda prevalece como outra forma de "enterre seus gays" ceifar a vida de personagens AMS, muitas vezes tirando suas vidas como resultado do ostracismo e rejeição. Isso se repete em muitos gêneros, incluindo romance, ficção histórica e até terror —
IT Capítulo 2 encerra os dois relacionamentos do mesmo sexo no filme com mortes explícitas. Embora algumas dessas histórias acabem com felicidade e aceitação, um final feliz não deveria parecer algo revolucionário para a população AMS.
Indo além do tropo
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Com Amor, Simon lida com homofobia, medo de rejeição e ser forçado a se assumir, mas o filme vai muito além disso |
Apesar da história predominante do tropo "enterre seus
gays", ainda há esperança para o futuro das narrativas AMS. À medida que mais e mais personagens AMS têm suas histórias contadas, os criadores estão começando a se afastar da ideia de lutas inerentes para contar histórias de amor, amizade e aceitação. Filmes como
Me Chame Pelo Seu Nome (
Call Me By Your Name) e
Com Amor, Simon (
Love, Simon) podem nem sempre ser felizes, mas eles exploram histórias profundas e enriquecedoras que não reduzem seus personagens AMS a mártires e vítimas. As histórias AMS nem sempre podem ser felizes, mas quando os filmes contam as histórias de personagens AMS e permitem que eles sejam importantes em vez de reduzi-los a um enredo descartável, eles finalmente podem ser personagens humanos complexos e cheios de nuances. À medida que mais histórias AMS estão sendo contadas, mais diversas elas se tornam, e os criadores estão deixando para trás o "enterre seus
gays" para, em vez disso, abraçar personagens AMS totalmente desenvolvidos e suas histórias.
Fonte
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